A DESISTÊNCIA NO MANDADO DE SEGURANÇA E A INTERPRETAÇÃO DOS TRIBUNAIS SUPERIORES

A DESISTÊNCIA NO MANDADO DE SEGURANÇA E A INTERPRETAÇÃO DOS TRIBUNAIS SUPERIORES

 

JOSÉ HENRIQUE MOUTA ARAÚJO[1]

Assunto muito comum no âmbito da advocacia pública e que vem sendo enfrentado pela jurisprudência dos Tribunais Superiores diz respeito ao pedido de desistência no mandado de segurança.

A Lei 12.016/09 não trata especificamente do assunto e existem algumas situações específicas, ligadas ao momento de apresentação do pedido: a) antes da notificação da autoridade e da citação da pessoa jurídica (art. 7º, I e II, a Lei 12.016/09); b) antes da decisão de mérito; c) após o julgamento meritório, concedida ou não a segurança; d) durante a tramitação do recurso interposto contra a decisão final; e) com o objetivo de se afastar dos efeitos de precedente vinculante ou de repercussão geral já declarada pelo STF em  recurso extraordinário.

É importante partir de uma premissa ligada ao sistema processual como um todo: ambas as partes possuem direito à resolução de mérito. Após este julgamento (especialmente quando o pedido é julgado improcedente), a desistência pode ser vista como ato atentatório a boa-fé processual.

O CPC/15 tenta controlar o direito a resolução de mérito e a boa-fé processual, ao indicar que o pleito deve ter concordância do réu e só pode ser formulado até a sentença (ou acórdão) – art. 485, §§4º e 5º.

Resta saber se os dispositivos gerais se aplicam ao mandado de segurança, tendo em vista que já existem precedentes[2], inclusive em RE com repercussão geral, consagrando que neste procedimento a desistência é livre.

Contudo, deve existir um limite máximo para o pedido de desistência no MS, à semelhança do previsto no art. 485, §5º, do CPC? Não se pode esquecer que foi provocado o sistema jurisdicional e autorizar, indefinidamente, a substituição de decisão meritória por homologação de desistência, poderá colocar em risco a própria credibilidade da atuação estatal, permitindo a escolha, pelo impetrante, do melhor de dois mundos (a concessão da segurança e, se não ocorrer, a desistência da demanda e futura provocação de nova prestação jurisdicional, com procedimento comum).

No STJ existem julgados, mais antigos, no sentido de que o limite máximo para a apresentação do pedido de desistência é a decisão de mérito, senão vejamos:

“Processual civil. Mandado de segurança. Prolação de sentença. Pedido de desistência. Homologação. Impossibilidade. 1. Após a prolação de sentença em mandado de segurança, incabível a homologação de pedido de desistência da ação. 2. Recurso provido”(RESp 550.770 Rel. Min. João Otávio de Noronha – J. em 24.10.06 – Dje de 04.12.06).

“Tributário. Processual civil. Mandado de segurança. Desistência. Agravo regimental. Somente cabível no Recurso Especial. 1. O pedido de desistência do mandado de segurança, sem a anuência da parte adversa, somente é possível antes da prolação da sentença. Após, cabível é apenas a desistência unilateral do recurso, nos termos do art. 501, do CPC, que também se aplica, nesse caso, ao recurso especial. (REsp 550.770-CE, DJ 4.12.2006) Agravo regimental provido.” (AgRg no REsp 291.059⁄PR, Rel. Min. Humberto Martins – 2ª Turma, J. em 21.06.2007, DJ 24.09.2007 p. 271).

“Processual civil. Agravo regimental. Mandado de segurança. Desistência do recurso. 1. Descabida é a homologação de pedido de desistência da ação, nesta instância recursal, mas tão-somente do recurso pois, nos termos do art. 501 do CPC, a parte poderá, a qualquer tempo, sem a anuência do recorrido ou dos litisconsortes, desistir do recurso. 2. Em havendo desistência do recurso inviável é o arbitramento de verba honorária, uma vez que caberá apenas a extinção do procedimento recursal 3-Agravo regimental desprovido.” (AgRg no REsp 543698⁄BA, Rel. Min. Denise Arruda – 1ª Turma, J. em 27.04.2004, DJ 31.05.2004 p. 198).

Não se pode esquecer que a desistência pode gerar uma verdadeira loteria processual, com a substituição, por exemplo, de um acórdão denegatório proferido por um Tribunal Superior, por uma nova demanda, com mesmo pedido e causa de pedido, proposta em 1ª instância.

Como já mencionado, no RE 669367, o Pretório Excelso reconheceu a existência de repercussão geral no tema (desistência em mandado de segurança e limite temporal) e, ao julgar o mérito, deu provimento, por maioria, ao apelo, para declarar a possibilidade de desistência da demanda a qualquer tempo, mesmo após a decisão de mérito, e independente de anuência da parte contrária. Esta é a ementa:

“Recurso extraordinário. Repercussão geral admitida. Processo civil. Mandado de segurança. Pedido de desistência deduzido após a prolação de sentença. Admissibilidade. “É lícito ao impetrante desistir da ação de mandado de segurança, independentemente de aquiescência da autoridade apontada como coatora ou da entidade estatal interessada ou, ainda, quando for o caso, dos litisconsortes passivos necessários” (MS 26.890-AgR/DF, Pleno, Ministro Celso de Mello, DJe de 23.10.2009), “a qualquer momento antes do término do julgamento” (MS 24.584-AgR/DF, Pleno, Ministro Ricardo Lewandowski, DJe de 20.6.2008), “mesmo após eventual sentença concessiva do ‘writ’ constitucional, (…) não se aplicando, em tal hipótese, a norma inscrita no art. 267, § 4º, do CPC” (RE 255.837-AgR/PR, 2ª Turma, Ministro Celso de Mello, DJe de 27.11.2009). Jurisprudência desta Suprema Corte reiterada em repercussão geral (Tema 530 – Desistência em mandado de segurança, sem aquiescência da parte contrária, após prolação de sentença de mérito, ainda que favorável ao impetrante). Recurso extraordinário provido” (RE 669367/RJ – Rel. Min. Luiz Fux. Rel. para acórdão Min. Rosa Weber – J. em 02/05/2013 – Tribunal Pleno).

O STJ também possui entendimento no mesmo sentido (v.g., RESp 1405532 – Rel. Min. Eliana Calmon – 2ª Turma – J. em 10/12/2013 – DJe de 18/12/2013). Há, inclusive, precedente consagrando a possibilidade de desistência parcial no MS (AgInt no RESP 1475948 –Rel. Min. Regina Helena Costa – 1ª T – J. em 02/08/2016 – DJe de 17/08/2016), com diminuição do objeto litigioso.

A questão maior a ser enfrentada é saber se este posicionamento encontra assento, com a entrada em vigor do art. 485, §5º, do CPC/15 e, também, nos casos de comprovada má-fé da parte para se esquivar do resultado firmado em processo repetitivo.

O próprio STF está, em casos específicos, fazendo distinção em relação ao decidido no RE RG 669367, inclusive com certa aproximação ao disposto no art. 485, §5º, do CPC. Existem julgados indicando a impossibilidade de homologação da desistência, quando há razoável possibilidade de reajuizamento da demanda sob o procedimento comum[3]. No tema, vale citar passagem do voto do Min. Teori Zavascki no ED no AgReg no MS 29.253:

“Consideradas as circunstâncias do caso, o pedido de desistência do mandado de segurança não pode ser homologado. Não se desconhece, certamente, o precedente firmado no RE 669.367 RG (Rel. Min. Luiz Fux, redatora do acórdão a Min. Rosa Weber, Pleno, DJe de 30/10/2014), segundo o qual pode a parte impetrante manifestar desistência da ação mandamental a qualquer tempo, mesmo após a sentença, independentemente da concordância da parte impetrada. Todavia, no caso, muito mais que o interesse das partes, está em questão a própria seriedade da função jurisdicional e a autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal. É que o ato aqui atacado, emanado do Conselho Nacional de Justiça, foi objeto de questionamento perante esta Corte em inúmeros mandados de segurança semelhantes, tendo o Tribunal, invariavelmente, denegado a ordem, tanto no Plenário, quanto nas Turmas. O pedido de desistência, formulado após o julgamento do agravo regimental e da oposição dos embargos declaratórios, não traduz disposição da parte impetrante de se conformar com o entendimento pacificado pelo Tribunal. Pelo contrário, há indisfarçável intenção de propor nova demanda nas instâncias ordinárias (valendo-se do que decidiu o STF na AO 1706 AgR, Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, j. 18/12/2013, DJe de 18/2/2014, conferindo ao juízo de primeiro grau a competência para processar e julgar ações ordinárias referentes à matéria). Esse propósito, como afirmado, faz pouco caso da seriedade e da autoridade das decisões desta Suprema Corte sobre a matéria questionada, sem falar que prolonga indevidamente em prejuízo da efetividade da função jurisdicional e em benefício de quem, segundo orientação do Tribunal, não tem razão o desfecho da controvérsia, tantas vezes já enfrentada e decidida” (EDAgReg no MS 29253. J. em 26.10.2016)”.

Já no RE 693456, a Corte reconheceu a impossibilidade de desistência no MS quando se está diante de tema com repercussão geral já afirmada, o que, aliás, está em consonância com o art. 998, parágrafo único, do CPC/15. Neste julgamento, foi firmada a tese de “impossibilidade de desistência de qualquer recurso ou mesmo de ação após o reconhecimento de repercussão geral da questão constitucional”. Eis a ementa:

“Recurso extraordinário. Repercussão geral reconhecida. Questão de ordem. Formulação de pedido de desistência da ação no recurso extraordinário em que reconhecida a repercussão geral da matéria. Impossibilidade. Mandado de segurança. Servidores públicos civis e direito de greve. Descontos dos dias parados em razão do movimento grevista. Possibilidade. Reafirmação da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Recurso do qual se conhece em parte, relativamente à qual é provido. 1. O Tribunal, por maioria, resolveu questão de ordem no sentido de não se admitir a desistência do mandado de segurança, firmando a tese da impossibilidade de desistência de qualquer recurso ou mesmo de ação após o reconhecimento de repercussão geral da questão constitucional. 2. A deflagração de greve por servidor público civil corresponde à suspensão do trabalho e, ainda que a greve não seja abusiva, como regra, a remuneração dos dias de paralisação não deve ser paga. 3. O desconto somente não se realizará se a greve tiver sido provocada por atraso no pagamento aos servidores públicos civis ou por outras situações excepcionais que justifiquem o afastamento da premissa da suspensão da relação funcional ou de trabalho, tais como aquelas em que o ente da administração ou o empregador tenha contribuído, mediante conduta recriminável, para que a greve ocorresse ou em que haja negociação sobre a compensação dos dias parados ou mesmo o parcelamento dos descontos. 4. Fixada a seguinte tese de repercussão geral: “A administração pública deve proceder ao desconto dos dias de paralisação decorrentes do exercício do direito de greve pelos servidores públicos, em virtude da suspensão do vínculo funcional que dela decorre, permitida a compensação em caso de acordo. O desconto será, contudo, incabível se ficar demonstrado que a greve foi provocada por conduta ilícita do Poder Público”. 5. Recurso extraordinário provido na parte de que a Corte conhece” (Relator(a):  Min. DIAS TOFFOLI – J. em 27/10/2016 – Tribunal Pleno – Dje de 18.10.2017).

Esse posicionamento é digno de elogios. Como já mencionado, permitir a desistência após a decisão de mérito (especialmente no caso de denegação da segurança), acaba por fomentar conduta contrária ao sistema processual civil de 2015.

Outras reflexões que devem ser feitas: a) a desistência após a decisão meritória pode gerar um reflexo semelhante ao da ação rescisória, desconstituindo o decisum contrário aos interesses do impetrante; b) o art. 494, do CPC/15 veda a possibilidade do juiz inovar no feito após a decisão final; c) após a decisão final o réu propriamente dito (pessoa jurídica de direito público) também tem direito a resolução definitiva da lide (especialmente quando a decisão está em seu favor em decorrência da denegação da segurança).

Ainda no tema, em outro julgado, o Tribunal enfrentou o pedido de desistência contra jurisprudência pacificada, consagrando que: “nas hipóteses em que demonstrado o mero intuito de se recusar observância a Jurisprudência pacífica da Corte, o Supremo Tribunal tem afastado o entendimento firmado no RE 669.367 RG (Relatora para o acórdão a Ministra Rosa Weber, Pleno, DJe de 30/10/14), segundo o qual pode a parte impetrante manifestar desistência da ação mandamental a qualquer tempo, mesmo após a sentença, independentemente da concordância da parte impetrada. Precedentes. Pedido de desistência não homologado” (AgReg nos EmbDecl nos EmbDecl em MS 29.083 DF – Rel. Min. Teori Zavascki – Rel. para acórdão Min. Dias Tofoli – J em 16/05/2017 – 2ª T).

Como se pode perceber, o próprio STF relativizou o entendimento firmado no RE RG 669.367, prestigiando, de um lado, a força da decisão judicial e, de outro, o princípio da boa-fé e à própria vedação geral de desistência após a prolação da decisão (art. 485, §5º, do CPC).

Por derradeiro, importante aduzir que, quando o mandamus tiver sido impetrado contra autoridade coatora federal e possuir reflexo pecuniário, também há a restrição do art. 3º da Lei 9.469/97 (desistência apenas pode quando gerar a renúncia ao direito que se funda a ação).

É possível concluir que a desistência no mandado de segurança não pode ser permitida de forma ilimitada, tendo em vista a necessidade de prestigiar a boa-fé processual, a coisa julgada, a eficácia preclusiva, o direito do réu à resolução da lide, a própria estabilidade das decisões judiciais e, em última análise, à própria previsão do art. 485, §5º, do CPC.

[1] Mestre (UFPA), Doutor (UFPA) e Pós-doutor (Universidade de Lisboa), professor do CESUPA/PA, Membro da ANNEP, IBDP, IIDP, CEAPRO, ABPC e ABDPRO, procurador do Estado do Pará e advogado. www.henriquemouta.com.br

[2] “Mandado de segurança. Desistência. Anuência da parte impetrada. Desnecessidade. Art. 267, § 4º. Inaplicável. 1. Este Tribunal, em outras oportunidades, já se manifestou no sentido de que a desistência da ação de mandado de segurança pode ocorrer a qualquer tempo, independente da concordância da pessoa jurídica impetrada. 2. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, alicerçada em sintonia com julgados do Excelso Supremo Tribunal Federal, assentou que “o pedido de desistência de mandado de segurança há de ser homologado independentemente da anuência da autoridade impetrada, ainda que em fase recursal”. (AROMS 12.394/MG, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJU 25.2.2002). Agravo regimental improvido”. (AgRg no REsp 510655 / MG – Relator Ministro Humberto Martins – 2ª T – J. em 18/08/2009 – Dje de 23/10/2009).

[3]  MS 29.129 EDEDAgR, j. 14/4/2015; MS 29.146 EDEDAgR, j. 14/4/2015; MS 29.128 EDEDAgR, j. 14/4/2015; MS 29.186 EDEDAgR, j. 14/4/2015; MS 29.189 EDEDAgR, j. 14/4/2015; MS 29.093 EDEDAgR, j. 14/4/2015; e MS 29.101 EDEDAgR, j. 14/4/2015.

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